
Desproporcional: o racismo ambiental em evidência nas periferias brasileiras
Segundo pesquisadora, população negra e pobre é a mais afetada por enchentes, calor extremo e falta de saneamento
Moradores das periferias em todo o Brasil sofrem com as consequências esmagadoras do racismo ambiental. Segundo dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56,8% das pessoas que moram nas favelas e comunidades urbanas do país se declaram pretas e 16,1% pardas. São essas pessoas que enfrentam calor extremo, enchentes causadas pelo transbordamento de córregos, incêndios e problemas psicológicos decorrentes do medo constante de catástrofes ambientais.

Racismo ambiental começa no Brasil colônia com o processo de etnocídio da população indígena, sequestro e encarceramento da população negra
(Foto: Ana Alice de Lima)
A assessora de Equidade e Relações Étnico-Raciais em Vigilância em Saúde Ambiental do Ministério da Saúde e pesquisadora em racismo ambiental, Ana Claudia Sanches, explica que o racismo ambiental é a desproporcionalidade das consequências da degradação do meio ambiente em territórios ocupados por populações racializadas, imigrantes e povos indígenas.
Sanches destaca que o racismo ambiental começou no Brasil Colônia, com o etnocídio dos povos indígenas e o sequestro e encarceramento da população negra, que foi forçada a viver em condições precárias de saneamento. Ela cita o autor caribenho Malcom Ferdinand, que afirma: “A colonização e a escravidão foram o que ajudaram a construir o mundo fundamentado na destruição ambiental.”

Segundo o Censo 2022, a maioria da população que vive nas favelas e comunidades urbanas é composta por mulheres (51,7%)
Imagine uma mulher jovem, moradora da periferia, mãe solo e catadora de materiais recicláveis, que precisa trabalhar debaixo de sol escaldante ou enfrentar chuvas torrenciais. Este é o cenário de muitas mulheres nas comunidades brasileiras. Segundo o Censo 2022, a maioria da população que vive nas favelas e comunidades urbanas é composta por mulheres (51,7%).
A pesquisadora lembra que, para uma mulher periférica que trabalha como catadora, as mudanças climáticas são determinantes. No calor excessivo, muitas vezes não há condições para comprar água fresca ou encontrar sombra para se proteger. Em caso de chuvas fortes, ela pode ser impedida de sair de casa. Mas, para essa mulher, o risco também está dentro da própria residência, que pode ser afetada por alagamentos e deslizamentos de terra.

Rompimento da barragem da mineradora Vale, em Brumadinho (MG), ocorrido em janeiro de 2019
(Antônio Cruz/AgênciaBrasil)
Sanches também destaca os impactos ambientais nas periferias rurais, onde grandes corporações contribuem para o desmatamento e o uso indevido dos recursos hídricos. É o caso do rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, da mineradora Vale. O acidente, ocorrido em 2019, causou cerca de 272 mortes e desabrigou famílias que viviam próximas à bacia do rio Paraopeba.
Ela ainda ressalta como as queimadas agravam as mudanças climáticas, alterando o regime de chuvas e elevando as temperaturas, além de dispersar nuvens de fumaça por diferentes regiões do país. Isso aconteceu em 2024, quando uma nuvem de fumaça, causada pelos incêndios na Amazônia, cobriu não apenas o Brasil, mas também países vizinhos como Peru, Bolívia e Uruguai.

Registro da dispersão da nuvem de fumaça gerada por queimadas na Amazônia, em 9 de setembro de 2024
(Reprodução/ClimaInfo/windy.com)

Em 25 de Agosto de 2024, Brasília amanheceu encoberta por fumaça causada por incêndios florestais
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)



Essa fumaça é composta por material particulado (sulfatos, nitratos, amônia, cloreto de sódio, fuligem, pó de minerais e água), que gera efeitos adversos na saúde, impactando principalmente crianças e idosos.
A falta de saneamento básico e de coleta de lixo regular nas periferias brasileiras é outro problema crônico apontado pela pesquisadora como exemplo claro de racismo ambiental. No Brasil, 44,5% da população não tem acesso à coleta de esgoto, segundo dados da ONG Painel Saneamento Brasil e do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). Sem esse serviço essencial, moradores dessas regiões estão mais suscetíveis a doenças como disenteria bacteriana e leptospirose.

Segundo levantamento no ano de 2024 São Paulo tinha quase 200 mil em áreas de risco
De acordo com levantamento da Agência Pública, com dados do GeoSampa (portal mantido pela Prefeitura de São Paulo), em 2024 o município contava com quase 200 mil moradias em áreas de risco de deslizamento de terra ou solapamento. É o caso dos moradores da comunidade Futuro Melhor, localizada na zona norte da cidade, que sofrem com o descaso do poder público.

Dona Nena, liderança da Comunidade Futuro Melhor, na zona norte de São Paulo
(Foto: Ana Alice de Lima)
“A gente finge que acredita neles”, desabafa Dona Nena, uma das lideranças da comunidade, referindo-se à prefeitura. Uma das principais obras de infraestrutura para conter alagamentos foi interrompida. Segundo a prefeitura, as obras não puderam avançar porque o terreno vizinho pertence à Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista (CTEEP). Por isso, muitas famílias seguem vivendo em áreas de risco, à beira de uma das principais vielas da comunidade.
No material de divulgação, a Prefeitura de São Paulo afirma que, desde 2021, foram investidos R$8,4 bilhões em obras, serviços e manutenção do sistema de drenagem urbana. No entanto, no início de 2025, a cidade enfrentou novamente fortes alagamentos nas zonas sul e leste. No bairro Jardim Pantanal, na zona leste, que sofre com enchentes desde a década de 1980, moradores ficaram ilhados por dias e contaram apenas com o apoio da própria comunidade para conseguir alimentos e água.
Sanches lembra que o cerne do conceito de racismo ambiental não está apenas nos impactos das mudanças climáticas sobre as populações racializadas, mas sim na desproporcionalidade desses impactos. Como citado, essas populações podem ficar dias sem acesso a alimentos e água por omissão do poder público, ou viver permanentemente em áreas de risco devido a entraves burocráticos entre o Estado e empresas.

Em seus quase trinta anos, a comunidade batalha contra as remoções e enchentes
“Viemos achando que seria só por uma chuva... Um ano, dois no máximo. E já se passaram quase 30”, diz Dona Nena, uma mulher de baixa estatura, com cabelos brancos e voz gentil. Ela faz parte da liderança da Comunidade Futuro Melhor, na zona norte de São Paulo.
Sua história começa em 1996, quando cerca de 150 famílias, lideradas por mulheres do coletivo Mulheres em Luta, junto com a Pastoral da Moradia, ocuparam uma área abandonada próxima a um córrego chamado Córrego do Bispo e suas vielas afluentes. Eram famílias que haviam sido ignoradas por políticas habitacionais e que decidiram organizar, com suas próprias mãos, um espaço onde pudessem viver com dignidade.

Mapa da Comunidade Futuro Melhor, localizada na zona norte de São Paulo, nas margens do Córrego do Bispo (reprodução/Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos)
Ao longo das décadas, a comunidade cresceu: de 150 famílias, passaram para cerca de 3.000, e os barracos de madeira se tornaram casas de alvenaria. Porém, cresceram também o número de casas em área de risco. E, com o tempo, vieram os problemas advindos de ocupar as margens do córrego e suas vielas.

Visão geral da Comunidade Futuro Melhor, na zona norte de São Paulo
(Fotos: Ana Alice de Lima)




Em 2019, a prefeitura de São Paulo iniciou um processo de remoção de casas erguidas sob o Córrego do Bispo
Dona Nena conta que as enchentes não tiraram vidas, mas levaram móveis e mantimentos. O momento mais tenso veio em 2019, quando a prefeitura, numa ordem judicial movida pela Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista (CTEEP), iniciou um processo de remoção de casas erguidas em um período de seca sob o Córrego do Bispo. Essas casas de madeira eram construídas como palafitas e sofriam com o movimento das águas do córrego.

Área do Córrego do Bispo na época das remoções em 2019
(Reprodução/Labcidade)
“A polícia vinha todo dia. Gritavam que no dia seguinte queriam tudo limpo. Entravam nas casas, quebravam geladeira... Como se a gente fosse bandido”, relembra Dona Nena. A situação quase terminou em confronto direto. Vídeos dos abusos foram enviados ao então vereador Eduardo Suplicy, que escreveu um ofício para o secretário de Segurança Pública, detalhando os acontecimentos na comunidade, impedindo a tragédia.
“Minha casa não ia sair, mas sofremos junto. Estávamos preparando colchão no chão para abrigar crianças que podiam estar no meio da guerra. Era esse o nível da tensão”, diz Dona Nena, lembrando a aflição daqueles dias.
Com a negociação e o pagamento do primeiro aluguel para os que iriam ficar desabrigados, a remoção parcial aconteceu, e as moradias mais próximas do córrego foram destruídas.

Na Viela do Monte, moradores de casas de alvenaria e barracos sofrem com o solapamento causado pela erosão do solo
O problema com as enchentes não foi solucionado por completo, já que, na Viela do Monte – afluente do Córrego do Bispo – muitos ainda vivem em situação de risco. São casas de alvenaria e alguns barracos de madeira, que sofrem não só com as enchentes causadas pelas chuvas, mas também com o processo de solapamento causado pelo enfraquecimento do solo ao longo da viela.

Ilustração do processo de solapamento que afeta a Viela do Monte, na Comunidade Futuro Melhor
*A partir de 2025 as casas da comunidade Futuro Melhor começaram a receber estrutura de saneamento básico pela Sabesp
Além disso, há a liberação de lixo das casas dentro do corpo de água da viela, o que ocasiona diminuição do leito e profundidade. Para o arquiteto Fernando Bottom, que trabalha com a comunidade Futuro Melhor desde 2019, em conjunto com o seu escritório de Assessoria Técnica Popular - FIO, a prefeitura precisa realizar a retirada do lixo manualmente e também aprofundar a calha da viela, o que não ocorre, pois, com o tempo, a terra que sai da borda da viela vai para o fundo, o que também ocasiona a diminuição de sua profundidade.
Futuro Melhor - Obra de Contenção
A última enchente na região ocorreu em 2023, após uma forte chuva, e resultou na perda de casas para 14 famílias. Sete dessas eram de madeira e foram completamente destruídas; as restantes apresentaram apenas riscos estruturais. O laudo técnico de 2023, elaborado pela Assessoria Técnica Popular - FIO, mostra o grau de vulnerabilidade dos moradores atingidos pela chuva e recomenda a limpeza e desobstrução da área que vai da Viela do Monte até o Córrego do Bispo.
A prefeitura realizou uma obra de contenção na Viela do Monte que atendeu parcialmente à demanda dos moradores, mas deixou um trecho vulnerável de fora, alegando que foi até o limite de seu terreno e não poderia avançar as obras para o terreno de posse da empresa de Transmissão de Energia Elétrica Paulista (CTEEP). Sendo assim, parte dos moradores continua vivendo em área de risco.
Mesmo assim, a obra se tornou um argumento a favor da comunidade, pois foi feita sem remoção de moradores. “Isso prova que é possível urbanizar sem arrancar as pessoas de onde vivem”, conta Dona Nena, animada com a projeção de urbanizar o seu bairro.
Por Ana Alice de Lima e Juliana Vidal
Nossos sinceros agradecimentos à professora Cris Barbosa e ao professor Bernardo Queiroz pela orientação; à equipe do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos pelo apoio; a todos os entrevistados, pelo seu tempo e conteúdo; e, por fim, ao designer Gabriel Tonza, sem ele, nada disso seria possível.

Estudante de Jornalismo. Estagiou dois anos na redação e nos podcasts da Agência Pública, atualmente atua como fotojornalista e social media para o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.

Jornalista em formação, atua na Comunicação Interna da Ânima Educação. Possui experiência em redação, mídias sociais e produção audiovisual.
O caminho das águas

Desproporcional: o racismo ambiental em evidência nas periferias brasileiras
Segundo pesquisadora, população negra e pobre é a mais afetada por enchentes, calor extremo e falta de saneamento
Moradores das periferias em todo o Brasil sofrem com as consequências esmagadoras do racismo ambiental. Segundo dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56,8% das pessoas que moram nas favelas e comunidades urbanas do país se declaram pretas e 16,1% pardas. São essas pessoas que enfrentam calor extremo, enchentes causadas pelo transbordamento de córregos, incêndios e problemas psicológicos decorrentes do medo constante de catástrofes ambientais.

Racismo ambiental começa no Brasil colônia com o processo de etnocídio da população indígena, sequestro e encarceramento da população negra
(Foto: Ana Alice de Lima)
A assessora de Equidade e Relações Étnico-Raciais em Vigilância em Saúde Ambiental do Ministério da Saúde e pesquisadora em racismo ambiental, Ana Claudia Sanches, explica que o racismo ambiental é a desproporcionalidade das consequências da degradação do meio ambiente em territórios ocupados por populações racializadas, imigrantes e povos indígenas.
Sanches destaca que o racismo ambiental começou no Brasil Colônia, com o etnocídio dos povos indígenas e o sequestro e encarceramento da população negra, que foi forçada a viver em condições precárias de saneamento. Ela cita o autor caribenho Malcom Ferdinand, que afirma: “A colonização e a escravidão foram o que ajudaram a construir o mundo fundamentado na destruição ambiental.”

Segundo o Censo 2022, a maioria da população que vive nas favelas e comunidades urbanas é composta por mulheres (51,7%)
Imagine uma mulher jovem, moradora da periferia, mãe solo e catadora de materiais recicláveis, que precisa trabalhar debaixo de sol escaldante ou enfrentar chuvas torrenciais. Este é o cenário de muitas mulheres nas comunidades brasileiras. Segundo o Censo 2022, a maioria da população que vive nas favelas e comunidades urbanas é composta por mulheres (51,7%).
A pesquisadora lembra que, para uma mulher periférica que trabalha como catadora, as mudanças climáticas são determinantes. No calor excessivo, muitas vezes não há condições para comprar água fresca ou encontrar sombra para se proteger. Em caso de chuvas fortes, ela pode ser impedida de sair de casa. Mas, para essa mulher, o risco também está dentro da própria residência, que pode ser afetada por alagamentos e deslizamentos de terra.

Rompimento da barragem da mineradora Vale, em Brumadinho (MG), ocorrido em janeiro de 2019
(Antônio Cruz/AgênciaBrasil)
Sanches também destaca os impactos ambientais nas periferias rurais, onde grandes corporações contribuem para o desmatamento e o uso indevido dos recursos hídricos. É o caso do rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, da mineradora Vale. O acidente, ocorrido em 2019, causou cerca de 272 mortes e desabrigou famílias que viviam próximas à bacia do rio Paraopeba.
Ela ainda ressalta como as queimadas agravam as mudanças climáticas, alterando o regime de chuvas e elevando as temperaturas, além de dispersar nuvens de fumaça por diferentes regiões do país. Isso aconteceu em 2024, quando uma nuvem de fumaça, causada pelos incêndios na Amazônia, cobriu não apenas o Brasil, mas também países vizinhos como Peru, Bolívia e Uruguai.

Registro da dispersão da nuvem de fumaça gerada por queimadas na Amazônia, em 9 de setembro de 2024
(Reprodução/ClimaInfo/windy.com)

Em 25 de Agosto de 2024, Brasília amanheceu encoberta por fumaça causada por incêndios florestais
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)



Essa fumaça é composta por material particulado (sulfatos, nitratos, amônia, cloreto de sódio, fuligem, pó de minerais e água), que gera efeitos adversos na saúde, impactando principalmente crianças e idosos.
A falta de saneamento básico e de coleta de lixo regular nas periferias brasileiras é outro problema crônico apontado pela pesquisadora como exemplo claro de racismo ambiental. No Brasil, 44,5% da população não tem acesso à coleta de esgoto, segundo dados da ONG Painel Saneamento Brasil e do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). Sem esse serviço essencial, moradores dessas regiões estão mais suscetíveis a doenças como disenteria bacteriana e leptospirose.

Segundo levantamento no ano de 2024 São Paulo tinha quase 200 mil em áreas de risco
De acordo com levantamento da Agência Pública, com dados do GeoSampa (portal mantido pela Prefeitura de São Paulo), em 2024 o município contava com quase 200 mil moradias em áreas de risco de deslizamento de terra ou solapamento. É o caso dos moradores da comunidade Futuro Melhor, localizada na zona norte da cidade, que sofrem com o descaso do poder público.

Dona Nena, liderança da Comunidade Futuro Melhor, na zona norte de São Paulo
(Foto: Ana Alice de Lima)
“A gente finge que acredita neles”, desabafa Dona Nena, uma das lideranças da comunidade, referindo-se à prefeitura. Uma das principais obras de infraestrutura para conter alagamentos foi interrompida. Segundo a prefeitura, as obras não puderam avançar porque o terreno vizinho pertence à Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista (CTEEP). Por isso, muitas famílias seguem vivendo em áreas de risco, à beira de uma das principais vielas da comunidade.
No material de divulgação, a Prefeitura de São Paulo afirma que, desde 2021, foram investidos R$8,4 bilhões em obras, serviços e manutenção do sistema de drenagem urbana. No entanto, no início de 2025, a cidade enfrentou novamente fortes alagamentos nas zonas sul e leste. No bairro Jardim Pantanal, na zona leste, que sofre com enchentes desde a década de 1980, moradores ficaram ilhados por dias e contaram apenas com o apoio da própria comunidade para conseguir alimentos e água.
Sanches lembra que o cerne do conceito de racismo ambiental não está apenas nos impactos das mudanças climáticas sobre as populações racializadas, mas sim na desproporcionalidade desses impactos. Como citado, essas populações podem ficar dias sem acesso a alimentos e água por omissão do poder público, ou viver permanentemente em áreas de risco devido a entraves burocráticos entre o Estado e empresas.

Em seus quase trinta anos, a comunidade batalha contra as remoções e enchentes
“Viemos achando que seria só por uma chuva... Um ano, dois no máximo. E já se passaram quase 30”, diz Dona Nena, uma mulher de baixa estatura, com cabelos brancos e voz gentil. Ela faz parte da liderança da Comunidade Futuro Melhor, na zona norte de São Paulo.
Sua história começa em 1996, quando cerca de 150 famílias, lideradas por mulheres do coletivo Mulheres em Luta, junto com a Pastoral da Moradia, ocuparam uma área abandonada próxima a um córrego chamado Córrego do Bispo e suas vielas afluentes. Eram famílias que haviam sido ignoradas por políticas habitacionais e que decidiram organizar, com suas próprias mãos, um espaço onde pudessem viver com dignidade.

Mapa da Comunidade Futuro Melhor, localizada na zona norte de São Paulo, nas margens do Córrego do Bispo (reprodução/Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos)
Ao longo das décadas, a comunidade cresceu: de 150 famílias, passaram para cerca de 3.000, e os barracos de madeira se tornaram casas de alvenaria. Porém, cresceram também o número de casas em área de risco. E, com o tempo, vieram os problemas advindos de ocupar as margens do córrego e suas vielas.

Visão geral da Comunidade Futuro Melhor, na zona norte de São Paulo
(Fotos: Ana Alice de Lima)




Em 2019, a prefeitura de São Paulo iniciou um processo de remoção de casas erguidas sob o Córrego do Bispo
Dona Nena conta que as enchentes não tiraram vidas, mas levaram móveis e mantimentos. O momento mais tenso veio em 2019, quando a prefeitura, numa ordem judicial movida pela Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista (CTEEP), iniciou um processo de remoção de casas erguidas em um período de seca sob o Córrego do Bispo. Essas casas de madeira eram construídas como palafitas e sofriam com o movimento das águas do córrego.

Área do Córrego do Bispo na época das remoções em 2019
(Reprodução/Labcidade)
“A polícia vinha todo dia. Gritavam que no dia seguinte queriam tudo limpo. Entravam nas casas, quebravam geladeira... Como se a gente fosse bandido”, relembra Dona Nena. A situação quase terminou em confronto direto. Vídeos dos abusos foram enviados ao então vereador Eduardo Suplicy, que escreveu um ofício para o secretário de Segurança Pública, detalhando os acontecimentos na comunidade, impedindo a tragédia.
“Minha casa não ia sair, mas sofremos junto. Estávamos preparando colchão no chão para abrigar crianças que podiam estar no meio da guerra. Era esse o nível da tensão”, diz Dona Nena, lembrando a aflição daqueles dias.
Com a negociação e o pagamento do primeiro aluguel para os que iriam ficar desabrigados, a remoção parcial aconteceu, e as moradias mais próximas do córrego foram destruídas.

Na Viela do Monte, moradores de casas de alvenaria e barracos sofrem com o solapamento causado pela erosão do solo
O problema com as enchentes não foi solucionado por completo, já que, na Viela do Monte – afluente do Córrego do Bispo – muitos ainda vivem em situação de risco. São casas de alvenaria e alguns barracos de madeira, que sofrem não só com as enchentes causadas pelas chuvas, mas também com o processo de solapamento causado pelo enfraquecimento do solo ao longo da viela.

Ilustração do processo de solapamento que afeta a Viela do Monte, na Comunidade Futuro Melhor
*A partir de 2025 as casas da comunidade Futuro Melhor começaram a receber estrutura de saneamento básico pela Sabesp
Além disso, há a liberação de lixo das casas dentro do corpo de água da viela, o que ocasiona diminuição do leito e profundidade. Para o arquiteto Fernando Bottom, que trabalha com a comunidade Futuro Melhor desde 2019, em conjunto com o seu escritório de Assessoria Técnica Popular - FIO, a prefeitura precisa realizar a retirada do lixo manualmente e também aprofundar a calha da viela, o que não ocorre, pois, com o tempo, a terra que sai da borda da viela vai para o fundo, o que também ocasiona a diminuição de sua profundidade.
Futuro Melhor - Obra de Contenção
A última enchente na região ocorreu em 2023, após uma forte chuva, e resultou na perda de casas para 14 famílias. Sete dessas eram de madeira e foram completamente destruídas; as restantes apresentaram apenas riscos estruturais. O laudo técnico de 2023, elaborado pela Assessoria Técnica Popular - FIO, mostra o grau de vulnerabilidade dos moradores atingidos pela chuva e recomenda a limpeza e desobstrução da área que vai da Viela do Monte até o Córrego do Bispo.
A prefeitura realizou uma obra de contenção na Viela do Monte que atendeu parcialmente à demanda dos moradores, mas deixou um trecho vulnerável de fora, alegando que foi até o limite de seu terreno e não poderia avançar as obras para o terreno de posse da empresa de Transmissão de Energia Elétrica Paulista (CTEEP). Sendo assim, parte dos moradores continua vivendo em área de risco.
Mesmo assim, a obra se tornou um argumento a favor da comunidade, pois foi feita sem remoção de moradores. “Isso prova que é possível urbanizar sem arrancar as pessoas de onde vivem”, conta Dona Nena, animada com a projeção de urbanizar o seu bairro.
Por Ana Alice de Lima e Juliana Vidal
Nossos sinceros agradecimentos à professora Cris Barbosa e ao professor Bernardo Queiroz pela orientação; à equipe do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos pelo apoio; a todos os entrevistados, pelo seu tempo e conteúdo; e, por fim, ao designer Gabriel Tonza, sem ele, nada disso seria possível.

Estudante de Jornalismo. Estagiou dois anos na redação e nos podcasts da Agência Pública, atualmente atua como fotojornalista e social media para o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.

Jornalista em formação, atua na Comunicação Interna da Ânima Educação. Possui experiência em redação, mídias sociais e produção audiovisual.
O caminho das águas
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